Saleiro

Nº de referência da peça: 
B293

Países Baixos Espanhóis
Século XVI – 2ª metade
Prata dourada
Dim.: 8.0 x 10,0 cm
Peso: 505 gr.
Proveniência: colecção particular, Lisboa

Salt Cellar
Spanish Low Countries
16th century – 2nd half
Gilt silver
Dim.: 8.0 x 10.0 cm
Weight: 505 g
B293
Provenance: Private collection, Lisbon

Este saleiro de prata dourada, em forma de prisma hexagonal assenta sobre pés em forma de quimera - corpo de felino, pescoço alongado torcido para cima e rosto de mulher - e estrutura-se como uma micro-arquitectura, onde as faces verticais apresentam nichos ou edículas em abóbada de conha, delimitados nas arestas verticais por colunas coríntias de fuste canelado.
Ao centro de cada nicho um dos seis nichos vemos figura em vulto redondo de menino ou putti, produzidas por fundição à semelhança dos pés e das colunas. Ora quase despidos, ora envergando traje militar romano (com elmo, túnica curta, couraça e balteus), os meninos empunham lanças, maças, ou arco e flecha, aludindo talvez a seis dos doze trabalhos de Héracles, um tema tão em voga no Renascimento, onde a figura do filho de Zeus é tomada como modelo de virtude e repositório de qualidades morais.
O reservatório para o sal, de forma hemisférica no topo do saleiro, é emoldurado por tarja decorativa de ferronnerie com obra de laço (ou cuir) de feição maneirista flamenga, sob fundo vegetalista, sendo esta, como também a decoração da predela, com enrolamentos cuir de terminal em golfinho, finamente cinzelada.
De estrutura em chapa com elementos obtidos por fundição aplicados e soldados (pés, colunas, etc.), as figuras de putti, de escala diminuta, são amovíveis e fixas ao recesso côncavo da edícula através de patilhas duplas. Como de regra para este período, o douramento, de grande espessura e riqueza, foi obtido por amálgama (dissolução do ouro em mercúrio) e aplicado apenas nas superfícies exteriores, permanecendo o interior em prata branca.
No Renascimento, complexos saleiros - em pedestal ou em forma de copas com tampa - evoluíram para objectos de aparato e, produzidos em metais preciosos e pedras duras, tinham não apenas um uso prático, mas, acima de tudo, uma importância cerimonial, assinalando o estatuto relativo dos convidados e sua posição à mesa em relação ao grande saleiro colocado junto do anfitrião.
O sal era então um produto dispendioso e a presença de um saleiro à mesa de banquete assinalava a prosperidade do anfitrião. Em meados do século XVI, o uso de saleiros mais pequenos difundiu-se pela Europa e, embora não destinado a uso individual, conjuntos de saleiros eram posicionados pela mesa. Seguiam uma grande variedade de formas, com aba em torno da concha (como no nosso exemplar), já que o sal era precioso e não podia cair sobre o linho: redondos, ovais, rectangulares, triangulares, hexagonais (como o presente) ou octogonais. Em metal precioso e servindo função cerimonial, os saleiros estavam mais sujeitos às mudanças ditadas pela moda - e vários desenhos sobrevivem de artistas famosos da época - resultando na sobrevivência de poucos exemplares. Novas linguagens levavam à renovação da prata antiga que dava lugar a novos objectos, e a sobrevivência de exemplares como este se deveu, sem dúvida, aos seus méritos artísticos.
É muito provável que um outro saleiro (8,2 x 10,6 cm) idêntico ao presente lhe faça par. Pertence à antiquária Sylvie l’Hermite-King, Paris, tendo pertencido à colecção parisiense do banqueiro e coleccionador Maurice Édouard Kann (1839-1906), depois vendido junto com a sua colecção na Galerie Georges Petit, Paris, 5-6 de Dezembro de 1910, lote 284. Apresenta algumas diferenças exclusivamente no topo, em particular na aba do reservatório, cuja decoração de ferronnerie é mais simplificada do que a do presente exemplar. A decoração de ambos completaria a representação dos doze trabalhos de Héracles, tal como proposto acima na identificação da sua iconografia.
Charles Oman, a propósito de dois saleiros eclesiásticos discutidos abaixo, refere a existência de dois saleiros prismáticos hexagonais assentes em pés em forma de quimera que parecem corresponder a este nosso exemplar e ao seu par em Paris. Pertenciam à famosa colecção Spitzer, reunida por Frédéric Spitzer (1815 ou 1816-1890) militar nascido em Viena de origem judaica e radicado em Paris, e um dos mais importantes coleccionadores e antiquários europeus dos finais do século XIX.
Os saleiros surgem publicadas como trabalho alemão do século XVI (cats. 47-48) no segundo volume de La Collection Spitzer. Antiquité. Moyen-Age. Renaissance (1891), onde as figuras são identificadas como Marte, Amor, Ceres, Hércules, etc. Surgem igualmente no catálogo de venda da colecção que teve lugar entre os dias 17 de Abril e 16 de Junho de 1893 em Paris sob os lotes 1747-1748. No catálogo resumé da venda, uma anotação contemporânea no exemplar da Frick Art Reference Library (call number April 17, 1893), diz-nos que foram adquiridos por um tal de “Duray”, sendo que o primeiro (que parece corresponder ao nosso exemplar) por “3.100” francos e o segundo, hoje em Paris, por “2.800” francos. “Duray” pode talvez ser identificado com o arquitecto Jean-Henry Duray (n. 1856) ou o seu irmão, o pintor Émile Duray (1862-1937) que, embora nascidos em Bruxelas, construíram as suas carreiras em Paris. Foram vendidos na segunda-feira, dia 29 de Maio de 1893, um dos quase quarenta dias daquela que foi considerada por muitos a “Venda do Século”, de uma extraordinária e enciclopédica colecção de artes decorativas vista então como a “Oitava Maravilha do Mundo” contando com 3369 lotes. Conhecido por ter como clientes o barão Adolphe de Rothschild, Sir Richard Wallace e William Randolph Hearst, a colecção e actividades de Spitzer são hoje vistas com certa desconfiança, e algumas peças identificadas mesmo como falsificações ou pastiches, em especial dada a sua associação ao joalheiro e restaurador Reinhold Vasters (1827-1909), Alfred André (1839-1919) e outros falsários da época. Trata-se no entanto de casos pontuais e varias peças da colecção Spitzer encontram-se hoje espalhadas por grandes museus internacionais, tanto na Europa como nos Estados Unidos da América.
Conservam-se dois saleiros (talvez um par) semelhantes ao presente, quanto à forma, no Hermitage, São Petersburgo (inv. F. 15044) e no Victoria and Albert Museum, Londres (inv. M.374-1956). No entanto, as colunas caneladas são nele substituídas por balaústres torneados, os pés quiméricos por bolas achatadas e as figuras nas edículas representam seis apóstolos e não figuras mitológicas, enquanto o reservatório para o sal assume forma hexagonal e não hemisférica, sendo a aba decorada por tarjas de cuir do mesmo repertório decorativo maneirista flamengo.
Enquanto o exemplar em São Petersburgo, com origem na colecção Shuvalov, deu entrada no museu russo em 1922 vindo das colecções do Palácio de Inverno, o exemplar em Londres, com origem no legado do Dr. D. L. Hildburgh (1876-1955), pertenceu à colecção de Freiherr von Stum, tendo sido vendido em Berlim a 4 de Outubro de 1932, lote 2299. A origem do exemplar russo foi atribuída com dúvidas a Madrid, sendo datado de cerca de 1600, enquanto o saleiro londrino foi identificado como obra de Toledo ou Cuenca, e da segunda metade do século XVI.
No entanto, tanto as diferenças na construção, numa maior ênfase na micro-arquitectura, e nas figuras modelas a cera perdida - ao contrário dos saleiros em Londres e São Petersburgo, cujas figuras de apóstolos são repuxadas na chapa metálica - como no repertório decorativo, inspirado em gravuras coevas de Cornelis Floris e Hans Vredeman de Vries, permitem atribuir o par em Paris e Lisboa como produtos de uma oficina dos Países Baixos do Sul.

Hugo Miguel Crespo

--

Hexagonal prismatic gilt silver salt cellar standing on chimera shaped feet – feline body creatures of upward curving necks and female faces – and structured as a micro-architecture in which the vertical faces are defined by shell domed alcoves flanked by fluted columns crowned by Corinthian capitals. In each alcove cast putti figures, some almost nude and some dressed in Roman military attire with helmets, short tunics, cuirasses and balteus, holding spears, maces and bows and arrows, in a possible allusion to six of Heracles Labours, a favoured topic during the Renaissance, a period in which this son of Zeus was embraced as a model of virtue and as a repository of moral qualities.
The hemispherical salt bowl on the top of the object is framed by a decorative Flemish Mannerist border on a foliage ground which, similarly to the dolphin finial predellas on the stand faces, is finely chiselled.
Of plate construction with applied and welted elements (feet, columns, etc.), the minute putti figures are removable and fixed to the alcove by double tabs. As it is characteristic of this period the thick and richly coloured gilding was obtained by an amalgam of mercury and gold applied to the object’s outer surfaces.

During the Renaissance Period complex salt cellars – pedestal or covered cup shaped - evolved into highly sophisticated display objects, often produced in precious metals and hard stones, which, well beyond their practical use were endowed of a profound ceremonial meaning that was linked both to each guest status and to their place at the table relatively to the large salt cellar placed next to the host.
Salt was an expensive commodity and the presence of a salt cellar on the dining table was indicative of the hosts prosperity. By the mid-16th century smaller slat cellars spread throughout Europe and, although not destined to individual use, sets of cellars were clustered on the table. Such utensils adopted a variety of shapes with lip framed bowls, such as the present example, so that the precious salt would not fall on the linen table cloths. They could be circular, oval, rectangular, triangular, hexagonal or octagonal. Those made in precious metals and serving a ceremonial function, often designed by major contemporary artists, were closely dependant to changes imposed by fashion what often compromised the survival of many examples. New aesthetic languages demanded the renewal of old silverware into updated objects, the survival of objects such as the one described certainly closely related to the recognition of its artistic merits.
It is likely that one closely similar salt cellar (dim.: 8.2 x 10.6 cm) belonging to the Paris antiques dealer Sylvie l’Hermite-King was originally the pair of the cellar herewith described. With provenance from the banker and collector Maurice Édouard Kann (1839-1906), it was sold at auction at the Georges Petit Gallery on the 5th and 6th December 1910 under lot 284. With some minor differences to the top, namely on the bowl lip, whose decoration is simpler than in our example, it would complete the depiction of the 12 Labours of Heracles, as we have suggested in the earlier iconographical description.
On the subject of two ecclesiastical salt cellars discussed further along in this text, Charles Oman refers the existence of two prismatic hexagonal cellars on chimera shaped feet that seem to correspond to the one described and to its pair in Paris. They belonged to the famous collection assembled by Frédéric Spitzer (1815/6-1890), a Vienna born Jewish military officer based in Paris and major antiquarian in late 19th century Europe. The cellars (cats.47-48) were published as 16th century German in volume II of “La Collection Spitzer. Antiquité. Moyen-Age. Renaissance”, (1891), the figures being identified as Mars, Amor, Ceres, Hercules, etc.
They are also identifiable under lots 1747 and 1748 in the Spitzer collection sale catalogue which took place in Paris between April 17th and June 16th 1893. A contemporary note in the sale resumé catalogue kept at the Frick Art Reference Library (call number April 17, 1893), specifies that they were acquired by a client named “Duray”, the latter lot having been sold for the amount of 2.800 francs, while the former, seemingly corresponding to our cellar, sold for 3.100 francs. The name “Duray” might refer to the architect Jean-Henry Duray (b. 1856) or to his brother the painter Émile Duray (1862-1937) both born in Belgium but settled in Paris.
Both cellars were sold on Monday, May 29th 1893, one of approximately 40 days of what was at the time considered the “Sale of the Century”. An extraordinary collection of decorative arts, defined as the Eighth Wonder of the World, the Spitzer sale totalled an extraordinary 3369 lots, many of which were acquired by other contemporary collectors such as Baron Adolphe de Rothschild, Sir Richard Wallace and William Randolph Hearst. Spitzer’s collection and activities are today seen with some distrust, some of his former artworks having been identified as fakes or pastiches, particularly for his association with Reinhold Vasters (1827-1909) and Alfred André (1839-1919) as well as with other contemporary forgers. These are exceptions however as various pieces that have belonged to the Spitzer collections are now displayed in important international museums both in Europe and in the United States.
Two other salt cellars of similar shape to the one described can be seen at the Hermitage Museum of Saint Petersburg (inv. F.15044) and at the Victoria and Albert Museum in London (inv. M.374-1956). However, on both of these instances the fluted columns were replaced by turned balusters, the chimeras by bun feet and the alcoved mythological figures by apostles. Additionally the salt bowl is hexagonal shaped rather than circular. The lip decoration adopts similar Mannerist aesthetic language border.
The Saint Petersburg salt cellar, originally from the Shuvalov collection, was transferred from the Winter Palace to the Hermitage in 1922 and its origin attributed, albeit with some doubts, to a Madrid production. Its London counterpart, donated by Dr. D.L. Hildburgh (1876-1955), was acquired from the Freiherr von Stum collection, sold in Berlin in October 4th 1932, under lot nr.2299, being attributed to a 2nd-half of the 16th century Toledo or Cuenca workshop.
However, differences in their construction, particularly emphasising the micro-architectures, and in the lost wax produced figures, opposed to the repoussé apostles of the Saint Petersburg and London salt cellars, as well as their decorative repertoire, inspired by contemporary prints by Cornelis Floris e Hans Vredeman de Vries, suggest, for the Lisbon and Paris salt cellars, a Southern Low Countries origin.

  • Arte Portuguesa e Europeia
  • Pratas
Peças Vendidas

Formulário de contacto - Peças

CAPTCHA
This question is for testing whether or not you are a human visitor and to prevent automated spam submissions.
Image CAPTCHA
Enter the characters shown in the image.