Crucifixo com calvário

Nº de referência da peça: 
F1324

Crucifix with Calvary
Ceylon (present-day Sri Lanka), and India, Goa
17th century
Carved and polychrome ivory, ebony, gilt copper, glass and relics
Height: 170.0 cm; width: 54.0 cm

Crucifixo com calvário
Marfim entalhado e policromado, ébano, cobre dourado, vidros e relíquias
Ceilão (actual Sri Lanka), e Índia, Goa
Século XVII
Alt.: 170,0 cm; Cristo 54,0 cm
F1324

Proveniência: Convento Dominicano dos Irlandeses, Lisboa. Este imponente Crucifixo pertenceu à sua igreja, a Igreja do Corpo Santo. Fundado no século XVII pelos padres dominicanos Irlandeses, foi adquirido a esta ordem no final de 2021, data em que os monges encerraram definitivamente o convento, regressando à Irlanda.

Exuberant composition combining a large Goan ebony Crucifix and Calvary and an exceptional Singhalese ivory sculpture depicting the Crucified Christ. This imposing piece has formerly belonged to the now extinct Convent of the Madonna of Rosary and to its adjacent Corpo Santo Church, in Lisbon, which were founded in the 17th century by Irish Dominican Priests. The crucifix was recently acquired to this Religious Order prior to its return to Ireland.
The Calvary, of evident architectural outline, as if replicating the frontispiece and pediment of a baroque Goan church, as well as the Cross frontal surface, are characterised by numerous small cells that encase holy relics of saints, with their respective identifying paper label, a detail that enhances the religious devotional purpose of this piece, notable for its dimension, opulence of materials and ivory carving mastery. Unusually large and of remarkable naturalism, the sculpture embodies all the essential characteristics of devotional ivories produced in Ceylon under Portuguese rule.
The long-lasting impression left by these Ceylonese ivory carvings produced for the Portuguese market, was witnessed first-hand by Jan Huygen van Linschoten (1563-1611), author of the famous Itinerario published in 1596. While in the service of Goa’s archbishop Vicente Fonseca, the prelate was gifted an ivory depiction of the Crucified Christ (possibly similar to the one herewith described) measuring about forty-five centimetres, which van Linschoten described as having been carved “in such an excellent and industrious way that His hair, beard, and face seemed as natural as if that of a living being, and so finely carved, with limbs so well proportioned that one would fail to see similar pieces made in Europe”.
Stemming from an ivory carving tradition that was promptly exploited by the Portuguese, whether missionaries commissioning the images required for the indoctrination of new converts, or state officials from the Portuguese State of India administration, the production of Catholic imagery in Ceylon reached enormous fame and prestige all over Asia, having been the starting point and dissemination centre for an industry that, following the 1658 island's invasion by the Dutch, did most probably transfer to Goa.
Therefore, it is not surprising that this Christ, probably dating from the early decades of the 17th century, was later mounted onto its opulent ebony Calvary in Goa, destined to be displayed on an altar in one of the many religious Houses in that territory or elsewhere in Portuguese India.
An analogous 17th century altar crucifix set with a Ceylonese ivory Christ, formerly from Old Goa Cathedral, can now be seen in the Museum of Christian Art at the Convent of Santa Mónica, a former Augustinian cenobium, (inv. 02.1.28) in the same city. Kept at the same museum (inv. 01.1.30a, 01.1.30b), and originating from the now extinct monastery that existed in the building, it is relevant to refer a Calvary cross in ebony (missing its ivory Christ), similarly decorated with openwork gilt copper fittings, and also produced in a 17th century Goa workshop.

Hugo Miguel Crespo
Centre for History, University of Lisbon

Bibliography:

PINTO, Maria Helena Mendes, et al., Museu de Arte Cristã. Convento de Santa Mónica, Goa, Índia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.

SILVA, Nuno Vassallo e, «Ingenuity and Excellence»: Ivory Art in Ceylon”, in Nuno Vassallo e Silva (ed.), Ivories in the Portuguese Empire, Lisboa, Scribe, 2013, pp. 87-141.

SOUSA, Maria da Conceição Borges de, “Ivory catechisms: Christian sculpture from Goa and Sri Lanka”, in Alan Chong (ed.), Christianity in Asia. Sacred art and visual splendour (cat.), Singapore, Asian Civilisations Museum, 2016, pp. 104-111.

TÁVORA, Bernardo Ferrão de Tavares e, Imaginária Luso-Oriental, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982.

Peça de grande exuberância combinando, crucifixo e calvário em ébano de grandes dimensões de origem goesa, com imagem de marfim maciço de fabrico cingalesa.
O calvário, de recorte arquitectónico como que reproduzindo o remate da fachada e frontão triangular de uma igreja barroca goesa, seguindo o frontão da Chiesa del Gesú em Roma.
Nele, assim como nos três braços maiores da cruz, dentro de virolas metálicas, recortadas e vazadas fechadas por pequenos vidros, compartimentos com relíquias de santos, com seus rótulos identificativos em papel, reforçando a função religiosa e devocional da presente peça, notável pela sua imponência, riqueza de materiais e qualidade do Cristo crucificado em marfim. Apesar da legibilidade limitada conseguem-se identificar os nomes de S. Filiciano, S. Concordia e S. Pio nos recetáculos dos braços da cruz e os de Valentini e S. Marcj. max nos rótulos presentes no calvário.
Todavia, o recetáculo central deste último apresenta um medalhão em cera branca representando o tema do Agnus Dei numa das suas faces. Deitado sobre o livro dos Sete Selos tal como relatado no Livro do Apocalipse de São João, segurando o estandarte da Ressurreição, símbolo do triunfo de Cristo sobre a morte, e nimbado, este é acompanhado pela inscrição que repete as palavras de São João Baptista: “Ecce Agnus Dei qui tollis peccatta mundi”. Apesar de não visível neste exemplar, a imagem é tendencialmente acompanhada pelo nome do Papa (prática iniciada no pontificado de João XXII, Papa de Avinhão, 1316- 1334), escudo papal, data e ano da bênção. De evidente valor apotrópaico, estes medalhões foram prontamente associados a outros objetos da mesma natureza, como as relíquias sagradas, sendo frequentemente inseridos em altares relicários, como aqui observado .

De grandes dimensões e notável naturalismo, o crucifixo apresenta todas as características essenciais dos marfins devocionais produzidos no Ceilão durante o período de domínio luso. Ligeiramente erguida para a direita, a face de formato triangular ergue os olhos, de fisionomia orientalizada, para o céu, com iris policromadas, onde as pálpebras inferiores, salientes, descrevem uma dupla curva. O cabelo castanho, finamente trabalhado, lavrado em sulcos lisos cai sobre os ombros. A barba bifurcada, policromada, é encimada por um bigode de longas guias apontando para o exterior. A boca finamente esculpida com o lábio superior em forma de coração remata uma face sofrida. Já o largo pescoço é caracterizado por dois sulcos, comuns nas representações budistas.
O tronco esguio, arqueado, de anatomia sumariamente tratada, evidencia a caixa torácica definida por costelas simetricamente delineadas. Os braços longos, delicadamente envolvidos por finas veias, permanecem ligeiramente elevados acima da horizontal simbolizando a salvação da Humanidade. Estes terminam em dedos cilíndricos, sustentados por mãos simétricas, onde as perfurações exercidas pelos cravos da Crucificação são visíveis. As pernas, rígidas, um tanto curtas, encontram-se sobrepostas estando a direita sobre a esquerda, de forma a acomodar o cravo da Crucificação. A escultura finda nos pés curtos, de traços angulosos, trabalhados de forma semelhante aos membros superiores.
Cristo é coberto por um cendal/subligaculum, seguro por um pine em forma de botão, à direita, muito característico dos Crucificados cíngalo-portugueses. Apesar da inspiração nos modelos europeus, o tratamento do tecido encontra-se desligado dos modelos de mimesis renascentistas, denotando-se, na disposição das dobras das roupas, o amor ao curvilíneo sinuoso que marca toda a produção síngalo-portuguesa . A respeito da policromia empregue na peça, é observável uma utilização limitada de pigmentos. Estes são discretamente aplicados ao cabelo, barbas, lábios e olhos, ainda que desgastado nos últimos dois.
Trabalhado a partir de uma única peça de marfim, com exceção dos braços e do pine do cendal, o seu notável tamanho transmite o comprimento da presa de elefante utilizada, revelando uma das razões pelas quais as esculturas de Cristo Crucificado serão das mais notáveis criações em marfim no Ceilão.

O impacto duradouro deixado pelas esculturas devocionais de marfim feitas no Ceilão para os portugueses foi testemunhado em primeira mão por Jan Huygen van Linschoten (1563-1611), o autor do famoso Itinerario publicado em 1596.
Enquanto Linschoten esteve ao serviço do arcebispo luso Vicente Fonseca, em Goa, recebeu do prelado a oferta de uma escultura de marfim do Cristo crucificado (sem dúvida semelhante ao presente) com cerca de quarenta e cinco centímetros de comprimento, que o autor descreve como tendo sido produzido de maneira tão excelente e diligente que o seu cabelo, barba e rosto pareciam tão naturais, como se fossem de um ser vivo, e tão finamente entalhado, com membros tão bem proporcionados que não lograria ver peças semelhantes feitas na Europa.
Decorrente de uma tradição de entalhe do marfim prontamente aproveitada pelos portugueses, seja por missionários empenhados em encomendar imagens de que tão desesperadamente precisavam para a doutrinação dos novos convertidos, ou até mesmo por oficiais de corte do Estado Português da Índia, a produção de imagens católicas no Ceilão alcançou enorme fama e prestígio em toda a Ásia, tendo sido o ponto de partida e centro de divulgação de uma indústria que, após a perda da ilha para os holandeses em 1658, provavelmente se trasladou para Goa.
Não estranha, portanto, que este Cristo crucificado, provavelmente das primeiras décadas do século XVII, tenha sido depois aplicado num calvário de rico ébano já em Goa, certamente para um altar de uma de muitas instituições religiosas do território goês ou mesmo de outra do Estado Português da Índia.
Incorporando também um Cristo crucificado de marfim do Ceilão, um crucifixo seiscentista com calvário de altar em ébano outrora pertencente à Sé Catedral de Velha Goa, expõe-se hoje no Museu de Arte Cristã no Convento de Santa Mónica (inv. 02.1.28). Também no mesmo museu (inv. 01.1.30a, 01.1.30b), e proveniente desse mesmo convento agostinho, refira-se uma cruz de calvário (sem o crucifixo em marfim) em ébano igualmente decorado com ferragens de cobre dourado, recortado e vazado, também de origem goesa e de fabrico seiscentista.

Hugo Miguel Crespo
Centro de História, Universidade de Lisboa

Marta Pereira

Bibliografia:

PINTO, Maria Helena Mendes, et al., Museu de Arte Cristã. Convento de Santa Mónica, Goa, Índia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
SILVA, Nuno Vassallo e, “«Engenho e Primor»: a Arte do Marfim no Ceilão”, in Nuno Vassallo e Silva (ed.), Marfins no Império Português, Lisboa, Scribe, 2013, pp. 87-141.
SOUSA, Maria da Conceição Borges de, “Ivory catechisms: Christian sculpture from Goa and Sri Lanka”, in Alan Chong (ed.), Christianity in Asia. Sacred art and visual splendour (cat.), Singapore, Asian Civilisations Museum, 2016, pp. 104-111.
TÁVORA, Bernardo Ferrão de Tavares e, Imaginária Luso-Oriental, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982.
SOUSA, Ana Cristina, “Ecce Agnus Dei: A Presença dos Medalhões de Cera nas Portas dos Sacrários”, in Genius Loci: lugares e significados, vol. 1, Porto: CITCEM, 2017
MARCOS, Margarida Mercedes Estella, Marfiles, México: MG Editores, 2010

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