Arcanjo São Miguel matando o Dragão

Nº de referência da peça: 
F1139

Archangel Michael slaying the Dragon
Carved ivory with traces of polychromy
Goa, India, 17th century (Indo-Portuguese)
H.: 32,0 cm
Prov.: Private colection Funchal, Madeira
Exhib.: ‘Venans de Loingtaines Voyages’, Bordeaux, 2019, n.14

Marfim com vestígios de policromia
Goa, Índia, Século XVII
Alt.: 32,0 cm
Prov.: colecção particular Funchal, Madeira
Expo.: ‘Venans de Loingtaines Voyages’, Bordéus, 2019, n.14

A rare and important sculpted group, made in Goa in the 17th century, finely carved in ivory and with traces of polychromy, depicting the Archangel Michael slaying the Dragon, an iconography of great rarity in the devotional Indo-Portuguese ivory carving production and of which no other example is known to us. In Hebrew, the name Michael means "one who is like God", traditionally interpreted in Catholic literature as the question "Who [is] like God?" (from the Latin, Qui ut Deus?), a rhetorical question that reveals itself as negative given that no one is like God, and therefore Michael is interpreted as a symbol of humility before God and, thus, the intermediary par excellence between the kingdom of men and the divine realm. The iconography that concerns us here refers to the biblical book of Revelation (12:7-9), in which Michael emerges as the general of the armies of God against the forces of Satan and his angels, defeating him in this celestial war. It is this victory against the forces of evil and in particular against the figure of Satan (dragon) that we find depicted in this sculpted group in ivory, a very useful and urgent iconographic for the missionary work carried out in Portuguese Asia during the so-called Age of Discovery, since the missionaries fought daily against the local evil forces of paganism.
A group unusually large, most likely produced for a private oratory of some nobleman settled in Asia or a rich merchant, in this Archangel Michael slaying the Dragon we see the figure of the archangel standing (lacking his original wings, which would be joined in the back), trampling the dragon's belly with his feet as he strikes a spear that pierces the dragon’s throat with his right hand, holding a staff in his left hand. Archangel Michael, dressed in a mixture of courtly attire, albeit military in appearance - with breast and backplate, articulated hip defenses and arm defenses, highlighted by polychrome decoration highlighted with gold - with reminiscences of Ancient Roman military attire, such as the cingulum militare with its baltea or hanging straps, and leg protections, also highlighted with pigment and gold over the carved surface of the ivory. The archangel, albeit wearing, as depicted in carving, a gown (roupeta) over the doublet, and a mantle on top fastened by a clasp over his chest, has on his head an elm, a helmet without a visor widely used by the Portuguese military stationed in India.
We do not know what exact visual sources the ivory carvers might have used for the production of this group, although it is clear that some kind of model, probably engraved, was provided by the client. Similar iconography, which may even have served as a model, may be found in an engraving by Hieronymus Wierix, whose work, especially devotional prints made in partnership with his brother and following the resolutions taken at the Council of Trent, was widespread in Portuguese Asia by Jesuit missionaries. From the first years of the seventeenth century and bearing the title Quis sicut Deus?, the engraving depicts St. Michael with open wings wearing a helmet with plumes, triumphing over the dragon, trampling his belly with his feet and hurling a spear through the dragon’s mouth, a print of which an example may be found in the British Museum, London, inv. no. 1859,0709.3148.
Curiously, our ivory dragon is depicted not in the form of a reptile as we would somewhat expect - without wings or claws, but with human appearance and human hands and feet - but as a naked human-like figure, of which only the head and the serpentine tail stand out. The open mouth, revealing the dragon's powerful teeth and curled goat-like horns betray the demonic nature of the depiction and its likely dependence on an autochthonous Indian model. In fact, the depiction derives from that of divs or dēws (Persian dīv), demons which are found in Persian literature and have large teeth, black lips, blue eyes, claws in their hands and gigantic bodies covered with fur, and are usually mistaken with the ghūl or ogres, associated not only with demons, but also with ogres, giants, and even Satan, which may explain our depiction in ivory. Demons, similar to ours, are depicted in contemporary examples of the Rāmāyaṇa - an ancient Indian epic poem that tells the story of Rama, whose wife had been kidnapped by the king of demons, Ravana - produced in the Mughal period under Iranian influence in both composition and in the depiction of demons.

Alongside the local way of depicting the dragon, clearly Hindu in character, mention should be made of the fineness of the depiction of the hair, reminiscent of the production of devotional ivory carvings in Ceylon and which constituted the starting point of the later Goan production, from the mid seventeenth century onwards.
Stemming from an ivory carving tradition which was promptly exploited by the Portuguese, whether by missionaries keen on commissioning the images they so desperately required for the indoctrination of new converts, or even by courtly officials, the production of Catholic images in Ceylon achieved huge fame and prestige, having been the starting point and dissemination centre for an industry that, from the island’s loss to the Dutch newcomers in 1658, and which probably moved to Goa,, thus explaining the Ceylonese reminiscences of our rare and very important Goan carving of the Archangel Michael slaying the Dragon. From nearby producing centres, notably from the Philippines, several examples of this iconography are known, some of them very large in size and all of them produced in Manila.

Raro e importante conjunto escultórico, produzido em Goa no século XVII, finamente entalhado em marfim e com vestígios de policromia, representando Arcanjo São Miguel matando o Dragão, iconografia de grande raridade na produção ebúrnea indo-portuguesa de carácter devocional e de que não conhecemos outro exemplar. Na língua hebraica, o nome Miguel significa “aquele que é semelhante a Deus”, tradicionalmente interpretado na literatura católica como a questão “Quem como Deus?” (do latim, Qui ut Deus?), pergunta retórica que se revela como negativa, dado que ninguém é como Deus, sendo Miguel interpretado como símbolo de humildade perante Deus e, assim, intermediário por excelência entre o reino dos homens e o divino. A iconografia que aqui nos ocupa refere-se ao livro bíblico do Apocalipse (12:7-9), no qual o arcanjo Miguel, surge como general dos exércitos de Deus contra as forças de Satanás e seus anjos, derrotando-o nessa guerra celestial. É essa vitória contra as forças do mal e, em particular, contra a figura de Satanás (dragão) que encontramos representada neste conjunto escultórico em marfim, explicando a sua premência iconográfica no trabalho missionário levado a cabo na Ásia Portuguesa durante o período dos Descobrimentos que, também eles, lutavam diariamente contra as forças do mal locais, o paganismo.
Grupo de excepcionais dimensões, muito provavelmente produzido para um oratório privado de algum nobre estante na Ásia ou rico mercador, neste Arcanjo São Miguel matando o Dragão o vemos a figura do arcanjo em pé (sem as suas asas originais, assembladas na parte posterior), calcando com os pés o ventre do dragão, enquanto lhe acomete com uma lança que lhe trespassa a garganta com a mão direita, segurando um bastão na mão esquerda. O arcanjo Miguel, trajando um misto de vestuário cortesão da época, embora de aspecto militar - com couraça (peito e espaldar), escarcelas articuladas e arneses de braços, realçados pela decoração polícroma avivada a ouro, - com sugestões do vestuário militar da Roma Antiga, como seja o cingulum militare com suas baltea ou bandas pendentes e protecções de perna, igualmente avivadas a pigmento e ouro sobre a superfície entalhada do marfim. O arcanjo, embora vestindo, tal como entalhado no marfim, uma roupeta sobre o gibão coberta por uma capa cingida por firmal redondo ao peito, enverga na cabeça um morrião ou bacinete, um elmo sem viseira muito utilizado pelos militares portugueses estantes na Índia.
Não sabemos quais possam ter sido as fontes visuais exactas utilizadas pelos entalhadores para a produção deste conjunto, embora seja claro que algum tipo de modelo, provavelmente gravado, tenha sido facultado pelo encomendador. Semelhante iconografia, que poderá mesmo ter servido de modelo, encontramos numa gravura da autoria de Hieronymus Wierix, cuja obra, em parceria com o seu irmão, mormente a devocional e seguindo os cânones tridentinos, foi muito difundida na Ásia Portuguesa pela mão dos missionários jesuítas. Datável dos primeiros anos do século XVII e com o título Quis sicut Deus?, a gravura representa São Miguel, de asas abertas e elmo com penacho, triunfando sobre o dragão, calcando-lhe o ventre com os pés e arremetendo-lhe uma lança pela boca, da qual existe exemplar no British Museum, Londres, inv. no. 1859,0709.3148.
Curiosamente, o nosso dragão de marfim apresenta-se não na forma de réptil que de alguma forma esperaríamos - sem assas nem garras, mas com fisionomia, mãos e pés humanos -, mas como uma figura antropomórfica nua, destacando-se apenas a cabeça e a cauda serpenteante. A cabeça aberta, deixando ver a poderosa dentição do dragão, e os chifres enrolados como de caprino, traem a natureza demoníaca da representação e a sua provável dependência face a um modelo autóctone, portanto indiano. Na verdade, esta figuração remete para os divs ou dēws (do persa dīv), demónios da literatura persa de grandes dentes, lábios negros, olhos azuis, garras nas mãos e corpos agigantados cobertos de pelagem, usualmente confundidos com os ghūl ou ogres, e que surgem associados não apenas à ideia de demónio, como também à de ogre, gigante, ou mesmo de Satanás, o que pode explicar a nossa figuração em marfim. Demónios em tudo semelhantes ao nosso, surgem representados em exemplares contemporâneos do Rāmāyaṇa - antigo poema épico indiano que conta a história de Rama, cuja esposa fora raptada pelo rei dos demónios, Ravana - produzidos no período mogol com grande influência iraniana tanto na composição como na representação dos demónios.
À figuração autóctone, de raiz claramente hindu, refira-se também a finura do tratamento dos cabelos, que remetem para a produção de escultura devocional entalhada em marfim produzida no Ceilão e que terá constituído a génese da posterior produção goesa, iniciada com maior expressão a partir de meados do século XVII. Com efeito, partindo de uma tradição escultórica em marfim desde logo aproveitada pelos Portugueses, fossem missionários desejosos de encomendar imagens de que tanto necessitavam para a doutrinação dos recém-convertidos, como oficiais da corte, cedo a produção de imaginária católica no Ceilão ganhou enorme fama e prestígio, tendo sido o ponto de partida e irradiação de uma indústria que a partir da perda da ilha para os recém-chegados holandeses em 1658, transitou muito provavelmente para Goa, explicando assim as reminiscências cingalesas desta nossa rara, e muito importante representação goesa de Arcanjo São Miguel matando o Dragão. De centros produtores próximos, nomeadamente das Filipinas, conhecem-se diversos exemplares desta iconografia, alguns de grandes dimensões, produzidos em Manila.

Hugo Miguel Crespo

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