Júlio Pomar: A MÃO É QUE VÊ. E MANDA! POMAR, OITO DÉCADAS

Apresentação


Oito décadas. Obras de 1946 a 2017 ou 18, década a década, da inicial
afirmação neo-realista até ao fim do caminho, mudando sempre o
passo sem quebra de energia.
O título indica sem qualquer retórica escusada o que aqui
se expõe. Oito décadas são um horizonte de trabalho contínuo e
também de vida (nove décadas, aliás) raramente acontecido, vivido
entre Paris e Lisboa, com uma dedicação plena à criação visual, e
também à escrita, de facto, sem se deixar prender em fórmulas
ou receitas, investigando sucessivamente diferentes linguagens
plásticas, renovando interesses e assuntos.
Estão aqui pinturas desde 1960; desenhos desde 1946, com
destaque inicial para um núcleo de trabalhos realizados na prisão de
Caxias em 1947; assemblages desde 1967, logo as primeiras e depois
aquelas a que voltava sempre num fazer muito lúdico, já tarde e
com um notório humor; e uma escultura de 1961, exemplar único
de um pequeno torso feminino em ferro. Vindos todos do espólio
deixado pelo artista — e algumas poucas excepções de uma colecção
particular (também duas peças de cerâmica pintada).
São obras que o pintor, que não fazia colecções, nem de obras
próprias, conservou, por especial gosto ou como obras maiores
disponíveis para as retrospectivas: pinturas (retratos de matriz
pop, incluindo a excepcional A Loba / La Louve que dá passagem
às duas colagens eróticas), e desenhos (em particular os grandes
retratos de Pessoa que integram e representam os trabalhos para
o Metropolitano de Lisboa).
São obras inéditas em muitos casos, alguns raros estudos
preparatórios (o artista não usava esboçar em papel motivos a passar
à tela), e são particularmente relevantes os estudos para Retour de
Brousse / Regresso da Selva, que aceitou projectar à escala das guardas
do grande álbum de 1990, onde as impressões da Amazónia se
conjugam com figuras recorrentes. São desenhos de longas séries
que tiveram por desígnio a ilustração, mas sempre excedendo a
encomenda como dedicado exercício da mão e necessidade / gosto
de desenhar, também como imaginação própria, no caso flagrante
do Quixote de 2005, identificando-se com este e mais com Sancho,
em dois auto-retratos subtilmente irónicos. E muitos anos antes,
1959 – 60, uma imaginada viagem a África para ilustrar o amigo
Gustavo Soromenho e as suas Histórias da Terra Negra. E ainda
antes a Maria da Fonte que vinha ilustrar Camilo e continuou até
ao grande quadro de 1957, decisivo momento de viragem.
São ocasionais desenhos de observação, de 1958, férias em
Aregos, peças inéditas de um bestiário sempre acrescentado com
novas espécies — adiante as vacas divertidas de um fim de semana
no campo, na Normandia, os poucos tigres desenhados da longa
série de pinturas (c. 1980 – 82), e o rinoceronte, corvos e gaivotas
para as paredes do Metro (Camões, Bocage, Pessoa, Almada), e
os cavalos afins das Tauromaquias. Ou o Abutre à chegada a Paris
quando frequentava assiduamente a Ménagerie do Jardin des Plantes;
logo depois os cavalos de corrida, interessando mais a velocidade
e o gesto do que a descrição da aparência. A mosca que seduziu o
Óscar Faria no seu texto. Até aos burros que foram um último animal
de estimação, ou de companhia, abraçando a guitarra porque o
convívio com o fado foi inspirador e um dos prazeres tardios (dois
desenhos de fadistas de 2010 – 11).
As figuras populares da Ribeira e da Fonte da Telha, estes
mariscadores de alguns quadros que já não eram neo-realistas e continuavam
a ver o povo e os espectáculos do trabalho. E os desenhos
trazidos do Xingu em pequenos cadernos — onde se prefiguravam
as pinturas do Kuarup, um ritual dos mortos, e de Huka-Huka, a
luta ritualista, e se regista a beleza singular das mulheres e mães
da floresta — sobre os quais escreve adiante o atento e informado
Shakil Y. Rahim.
Haverá certamente vários fios condutores identificáveis
nesta antologia continuada sem hiatos cronológicos, e outras séries
tiveram de ficar de fora, mas um dos mais evidentes é a expressão
do erotismo, no caso a atracção pelo corpo feminino e pela prática
do amor-sexo. Note-se que começa aqui pelos nus desenhados em
Caxias (há nus anteriores), os quais mereceram logo críticas da
ortodoxia ideológica; afirma-se livremente em desenhos de 1960,
alguns levados à II Exposição Gulbenkian, e ganha maior intensidade
corpórea nos anos 1980 a pretexto de ilustrações para livros
de Gilbert Lely e Maria Velho da Costa, aqui Corpo Verde.
Entre as pinturas maiores deste e de todo o percurso estão
os dois quadros sobreviventes da exposição parisiense de 2002,
onde Pomar se encontra com os mitos e com a Pintura de História,
reafirmada aí como o grande género. Tempo de largos formatos e de
assuntos maiores: a presença sempre adiada da morte (invertendo
o mito, Ulisses tapa os ouvidos ao canto das sereias, em vez de as
querer ouvir amarrado ao mastro, industriado por Circe) e a lição
das artes negras na modernidade europeia, representada pelas três
deusas do Julgamento de Páris (aqui agrilhoadas como escravas) e
pelo par que dança à direita, seguramente jazz.

 

 

Alexandre Pomar

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