Ventó Sino-português Decorado com Figuras Europeias / A Ming Ventó with European Figures, China, séc. XVII / 17th. c.
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Important South China made lacquered wood ventó of European figures decoration. Of parallelepiped format, its interior was designed to contain a large, and a now missing, shallow drawer. The box, the drawer and the door joinery features are characteristic of Ming dynasty furniture: the edges are rounded, and the panels present half-lap joints of cylindrical wooden pegs; the door comprises of a central panel assembled by mortice and tenon joints, while the frame has four mitre, and mortice and tenon joints typical of Chinese tabletops. Identically to namban ventós, the case rests on a raised frame, resulting from the lowermost extension of its side panels.
The ventó decoration consists of a thin, semi-transparent layer of brown coloured urushi lacquer, possibly its natural colour, and pigments dyed (iro-urushi) polychrome and textured lacquer (urushi-e), enhanced with maki-e and sprinkled silver dust on urushi. From the four elevations emerge vibrantly coloured male and female figures painted over the splendid wood grain:
On the door front, a youth of wide brimmed black hat, perhaps a shepherd or a pilgrim with his staff, glancing bucolically at two simple flowers; the figure is attired in doublet and green trousers (a “road” colour, used in the countryside or while travelling), tied with a red coloured ribbon of identical shade to the turned top boots and long, sleeveless cassock.
On the right-hand side panel two figures, apparently of lower status and attired in “road costume”. The male, seemingly greeting the female, wears identical costume to the first youth, although with short trousers, red socks and shoes, and holds a bag in his right hand; the red hair, similarly to the other characters, may perhaps identify a new Christian. The woman, almost fully covered as per the demands of contemporary decorum, wears a striped green skirt, long black cloak over the shoulders and white headscarf.
By contrast, the left-hand side elevation portrays a pair dressed in analogous “road costume”, but the courtly variation from ca. 1600; the male sporting a sword and dagger and wearing red doublet, trousers and socks, green shoes and identically coloured and gold trimmed cassock, ruff collar and hat; the female wearing green doublet and skirt, yellow sleeved gold trimmed blouse, broad collar and black veil.
On the rear surface a knight in black hat, red doublet, gold trimmed cassock with buttons, green trousers and socks, tied with red ribbon, and long black gold trimmed ferreruolo cape.
Given the accuracy of the portrayal and of the costume, it is likely that, contrary to the customary depictions of Europeans in namban art, the artist was handed over, by the patron, the printed sources that informed the decorative composition.
Contrasting with most furniture typologies produced in Asia for exporting to Europe, in whose origin, manufacturing, and subsequent regional and international trade via the India Run, the role of the Portuguese was determinant, the ventó emerges from a pre-existent eastern model. It is well known that on the arrival of the first Portuguese to western India, the Konkan and Malabar coasts, furniture was virtually non-existent, being restricted to boxes, trays and the very rich thrones used by the Hindu and Islamic courts. Contrary to India, in eastern Asia, specifically in China and Japan, furniture was widely used, and manufactured in a plethora of typologies, some analogous to the European.
Effectively, types of storage furniture with drawers, like western writing boxes and cabinets, were already common in the Ming dynasty homes of bureaucrats and scholars. One such typology, unknown to the Portuguese cabinet makers, was the ventó, characterised for its small size, easily portable parallelepiped shape, inner drawers, door hinged to the right with lock to the left, and top handle. An intriguing term that, present in contemporary records to refer to Chinese pieces – emerging in such written variations as vento, ventô, bentó or bentô – had its origin, according to Sebastião Dalgado, the author of the Luso-Asiático Glossary, in the Malay word bentoq, meaning "small oriental cabinet".
The historical importance, and the major documental relevance of the herein described ventó, does not simply derive from the rare depictions of Europeans on its surfaces, but also for presenting us with a rare Chinese made object, of which, despite the abundant documental references to such lacquers - some of the earliest far eastern products to reach Europe via Lisbon - there are so very few extant examples.
Although a rather modest object for its small dimensions, perhaps a marriage objet de vertu - produced in the scope of a commission for celebrating a matrimonial union, as it can be deduced from its iconography – evidencing wear and a somehow troubled life, both traits that endow it with added testimonial relevance, this ventó is also a major document to the cultural and artistic exchanges initiated by the Portuguese, during the “globalization” period fostered by the Discoveries.
Importante ventó da primeira metade do século XVII, executado no sul da China, em madeira exótica lacada, apresentando nas quatro faces raras representações de europeus.
De caixa paralelepipédica, apresenta no interior um gavetão e teria uma gaveta estreita, agora desaparecida. Tanto a caixa, como o gavetão e a porta, apresentam um tipo de junta típico do mobiliário chinês da dinastia Ming: as arestas são arredondadas, os painéis da caixa apresentam junta à meia madeira com malhetes rectos, fixados por pinos cilíndricos de madeira; a porta é formada por painel central assemblado por furo e respiga e moldura tem quatro secções à meia esquadria, igualmente com assemblagem de furo e respiga, típica dos tampos das mesas chinesas. À semelhança dos ventós namban, que nunca apresentam pés, assenta sobre moldura resultante no prolongamento inferior dos painéis laterais da caixa.
A decoração consiste numa camada fina e semitransparente de laca acastanhada, urushi, provavelmente à cor natural, e laca em relevo polícroma (urushi-e), colorida com pigmentos (iro-urushi) e enriquecida com maki-e, com pó de prata polvilhada sobre urushi.
Em todas as faces, com excepção do topo e da base, surgem figuras masculinas e femininas relevadas, de cores vibrantes sobre os belíssimos veios da madeira:
- Na frente, um jovem com chapéu preto e aba larga, talvez um pastor ou romeiro, com seu cajado, olhando bucolicamente para duas singelas flores; veste largo gibão e calças verdes (cor de caminho, usada no campo ou em viagem) atadas por fita vermelha, a cor das botas de cano revirado e da comprida roupeta sem mangas.
- Na ilharga direita, duas figuras trajando roupa de caminho, aparentemente de baixa condição social. O homem, que parece cumprimentar a senhora, usa vestuário idêntico à figura da frente - embora com calções, meias vermelhas e sapatos - e segura uma bolsa na mão direita; os cabelos são ruivos (como o das restantes personagens), o que pode indicar tratar-se de um cristão-novo. A mulher, quase integralmente coberta seguindo o decorum da época, veste uma vasquinha verde listada, largo manto negro cobrindo os ombros e lenço branco na cabeça.
- Em contraste, a ilharga esquerda apresenta um casal vestido à moda cortesã de ca. 1600, trajando igualmente roupa de caminho: o cavaleiro com sua espada e punhal, veste gibão, calças e meias vermelhas, sapatos e roupeta verde debruada a ouro, com gola encanudada e chapéu; a dama, usa gibão e vasquinha verde, corpinho de mangas amarelas, debruado a ouro, larga gola e véu negro.
- No tardoz surge um cavaleiro de chapéu preto, com gibão vermelho, roupeta - debruada a ouro, com muitos botões - calças e meias verdes presas com fita vermelha, e largo ferragoulo negro debruado a ouro.
Dado o rigor da representação e do vestuário é muito provável que, ao contrário do que sucede com a dos europeus na arte namban, o artista tenha recebido por parte do encomendante as fontes gráficas que informaram a decoração deste ventó.
Em oposição à grande maioria de tipologias de mobiliário produzidas na Ásia para exportação sob encomenda europeia, onde o papel dos portugueses foi determinante na sua génese, manufactura e subsequente comércio regional e internacional através da Carreira da Índia, o ventó surge como uma modelo pré-existente.
Sabemos que, aquando da chegada dos primeiros portugueses à costa ocidental indiana, do Concão e do Malabar, o mobiliário era praticamente inexistente, resumindo-se as tipologias a caixas, bandejas e a ricos tronos usados nas cortes hindus e muçulmanas. Ao contrário da Índia, o mobiliário na Asia Oriental, mais concretamente na China e no Japão, era amplamente usado e produzido segundo uma miríada de tipos diferenciados, muitos análogos aos europeus.
Com efeito, móveis de gavetas semelhantes aos nossos escritórios e contadores, eram usuais nas habitações de burocratas e letrados chineses da dinastia Ming. Uma dessas tipologias, desconhecida dos mestres marceneiros portugueses, é o ventó, a forma que aqui nos ocupa, caracterizado por ser um pequeno móvel paralelepipédico, com gavetas de diferentes tamanhos e uma porta frontal, dobradiças na aresta direita e fechadura na esquerda, muito portável, com asa no topo. A curiosa designação, usada na documentação coeva para nomear peças com origem chinesa - e que pode surgir com as variantes gráficas de vento, ventô, bentó ou bentô - teria origem, segundo Sebastião Dalgado, autor do Glossário Luso-Asiático, no vocábulo malaio bentoq, ou "pequeno escritório oriental".
A importância histórica e o enorme valor documental do presente ventó, não advém apenas da rara representação de europeus nas suas faces, mas também por nos dar a conhecer uma rara peça de produção provavelmente chinesa, da qual, embora tenhamos abundante documentação sobre o seu consumo, já que as lacas chinesas foram dos primeiros produtos extremo-orientais a chegar à Europa via Lisboa, possuímos tão poucos exemplares.
Apesar de se tratar de uma modesta peça nas suas dimensões, talvez object de vertù de carácter nupcial - produzida no âmbito de encomenda para celebrar uma aliança matrimonial, como se poderá depreender da sua iconografia, com casais ou pares de figuras masculinas e femininas - com claros sinais de uso e marcas de uma vivência atribulada que emprestam a esta peça um valor testemunhal acrescido, este ventó é um documento importante sobre as trocas culturais e artísticas, encetadas pelos portugueses no período de globalização potenciado, pelos Descobrimentos.